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O amolador da aldeia
Agora mesmo, mais de 40 anos depois, passa-me aqui à porta, perto de Sesimbra, um homem a tocar a mesma gaita: uma espécie de gaita-de-beiços, feita de plástico às cores. Estava eu a regressar da «bica» de descafeinado e eis o som!
My God!
Igualzinho.
Lá atrás no meu cérebro, o som trouxe as recordações do outro amolador, o da aldeia.
Para que servia?
Para amolar tesouras, meter grampos em pratos partidos que se queriam aproveitar ainda, afiar facas e consertar os guarda-chuvas que se iam degradando.
Era para isso que aparecia regularmente na ladeia.
A primeira reminiscência que tenho do amolador é muito remota. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos. Depois disso, sempre que o ouvia, era uma festa dentro de mim e dos outros miúdos.
Ele era de fora.
Já ninguém se lembra de onde.
Acho que chegava numa motoreta velhíssima.
Lembro-me de que ele armazenava guarda-chuvas estragados, avariados que pendurava lá atrás. Este que vi hoje tinha uma roda grande. Acho que o da minha meninice também. Porque era com essa roda que afiava as facas e as tesouras.
O grito de marketing do homem na aldeia era este (e é insubstituível):
- Compõem-se as varetas dos guarda-chuvas e não se enleia o arame!
Tudo muito musicado.
Depois, uma gaitada na gaita-de-beiços especial.
E ainda:
- Afiam-se as facas e amolam-se as tesouras!
Sempre a mesma «melodia» na voz de pregão…
E lá ia outra gaitada…
Que maravilha.
E que bom, tantos anos depois, a tantos quilómetros, voltar a ouvir a mesma gaita… Mas sem pregão, não sei porquê. Sinal dos tempos: já não há tempo para floreados…
O homem seguiu.
Já se foi embora.
E acho que não compôs nenhum guarda-chuva a ninguém e ninguém lhe terá trazido nenhuma faca nem nenhuma tesoura para amolar…
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