domingo, julho 30, 2006

Mas a quem?


Pedir emprestado...

Os ditados populares de pouco servem se cotejados com a ciência e a técnica mas são óptimos para dar a conhecer o sentir profundo de um povo.
É o caso que trago hoje.

No meio desta pachorra e calmaria das férias e a propósito de pedir emprestada alguma coisa, houve logo quem dissesse:
- Não peças a quem pediu.
E a resposta, em reforço:
- Nem sirvas a quem serviu.

São ditados populares da minha terra.
Parece que o povo descobriu ao longo de séculos que aquele que vem de baixo e um dia pôde ter algum poder, em geral abusa e estraga tudo.
Sabedorias.
Valem o que valem.
Mas não é por nada disso que aqui trago estas linhas.
Não.
É para introduzir uma história.


Esta é uma história «diabólica» (com imensa piada) acontecida no tempo do meu bisavô, no princípio do século XX – que, traduzido para aquele início da Cova da Beira, significa Idade Média pura.
Eis a estória: uma história bem popular. Uma história real, mas que mais parece ficção.

Ao homem em causa chamavam t’ Zé Custódio, e isso tem de ser explicado para se entender. Isso significa: o sr. José custódio. É que a palavra «senhor», lá, só era usada para referir os possidentes da terra, os terra-tenentes de alguma dimensão, não sei se ma faço entender. Os outros eram todos «tios», ti’, ou só t’ Zé. E assim por diante…

Pois bem: o t’ Zé Custódio não tinha carro de bois (lá diz-se «carro de vacas»), o que, numa zona puramente rural e agrícola, seria um grande défice de equipamento, como se entende.
E como é que o homem se safava? Muito simples: ia pedindo o carro emprestado a toda a gente da aldeia: ora a um, ora a outro – ele lá se desenrascava…
E assim foi durante anos. E toda a gente a «remoscaldar» (a criticar) nas costas dele o facto de se «pendurar» em toda a gente e nunca mais mandar fazer um «carro de vacas».
Ao fim de vários anos nesta situação, os lavradores juntaram-se e, sem que ele soubesse de nada, mandaram-lhe fazer um carro (o ti’ Zé Mel fazia-os que era um primor) para lho oferecerem.
E assim fizeram: no dia de Páscoa desse ano, o carro estava pronto como combinado e lá fizeram a surpresa ao t’ Zé Custódio.
Depois de missa (é assim que se diz), já na Praça, antes de subir cada um para suas casas, chamaram o t’ Zé Custódio e vai disto:
- Este carro é para ti. Nós oferecemos-to. É para nunca mais andares a pedir o carro a toda a gente.
O homem, «moita-carrasco». Achou aquilo absolutamente normal. Foi buscar as vacas, atrelou-as ao carro novo e «ala», que se faz tarde.
A coisa morreu por ali e não passaria de uma história de solidariedades de aldeões, não fora o remate com que as nossas avós nos deliciavam, à noite, ao serão sem televisão mas com muita envolvência familiar…
Um ou dois dias depois, um dos lavradores que tinha contribuído para a oferta do carro passa pelo t’ Zé Custódio já com as vacas atreladas ao seu carrinho novo e pergunta-lhe:
- Então, homem. O carro é bom?
Resposta pronta do outro que ficou para a história da aldeia:
- É bom é. Agora venha cá algum filho da p*** a pedir-mo!

Moral da história, na voz da minha avó:
- Estás a ver, filho. Bem dizem: «Não peças a quem pediu nem sirvas a quem serviu».


E digo eu hoje, depois de milhares de páginas lidas e de 36 ou 37 anos de lutas: claro que esta sabedoria popular tem por detrás algo de intrinsecamente reaccionário. Mas quem é que explicou isso à minha avó e ao meu bisavô?

3 comentários:

Anónimo disse...

Está-se a despedir JCM? Ou..

José Carlos Mendes disse...

Nada de despedidas. Apenas um grande gozo em escrever. Estas estórias da minha meninice ainda um dia hão-de ser ilustradas e editadas. Nem sei quando nem sei como. Só sei que vai acontecer. Uma espécie de homenagem ao povo da minha terra. Isto, para férias, é um aóptima terapia: escrever,e screver, escrever sempre...

Anónimo disse...

Estava a ler estas histórias (umas que me são familiares, outras não)e a pensar nisso mesmo. Que valia a pena editar todo este material para memória futura do nosso Casteleiro.