quarta-feira, agosto 09, 2006

O Neca e o seu «Nada do meu Nada»

Algumas peripécias do poeta da terra

Histórias e lendas sobre a vida (e «obra») do Neca, é o que mais há. Seleccionar duas ou três minimamente representativas do seu universo psicológico e social é um problema. Mas vamos a isso.
O Neca era um boémio, na concepção mais alargada da palavra: sempre disposto a uns copos, uma farra, um paleio com os amigos.
O pai era o comerciante mais sucedido da terra. Cheio de cacau, pois claro. Por isso, ao Neca nunca faltava massa. Pelo contrário. E se faltasse, era só ir à gaveta: havia lá sempre. E se lá não fosse ele mesmo, a mão tratava do assunto.

Tudo começou bem cedo.
Aos 18 anos, depois de internamento no Colégio de Tomar e tudo, para ver se a coisa dava para o estudo, o Neca finalmente decidiu que curso queria tirar: jornalismo, em Salamanca (disse-me a mim mesmo que era um curso de 18 meses). Convenceu os pais a darem-lhe cacau suficiente para por lá estar uns meses para se ambientar e para iniciar o curso. Meteu a massa no bolso e zarpou em direcção a Salamanca, despedindo-se porque só regressaria daí a uns meses… Muita massa, para a época: meados dos anos 50.
Arrancou, fez a vida larga que se adivinha e, passada uma semana, estava de volta.
Nem uma aula, nem um sinal do curso de jornalismo, nem nada.
Só uma porrada de massa derretida e mais umas noitadas no currículo, desta vez em Espanha…

Tinha muitas.
Quando chegou ali pelos 30, achou que, na vida, todos tinham de «plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro». E pautou a sua vida nesse tempo por esse lema.
Teve os filhos cedo. Plantou um pomar a quatro quilómetros da terra (pomar que rapidamente secou por falta de tudo, claro). Faltava-lhe então escrever um livro.
E escreveu.
E publicou.
Publicou, é uma maneira de dizer: os mil exemplares ficaram quase todos encaixotados no sótão da tal casa do pomar, escondidos, para que nem se soubesse que ainda lá estavam. Eu tenho um exemplar, com dedicatória. Sou dos poucos que leram o «Nada do Meu Nada», livro de poemas minúsculos como se de uma escola miniaturista se tratasse.
São cerca de 140 a 150 páginas, com 100 poemas de quatro a cinco linhas cada um (os maiores), com pensamentos do Neca sobre a vida em geral e as suas angústias da época em particular…
Uma façanha claro, para a aldeia e para a época. Mas poucas pessoas chegaram a lê-lo…

Um dia, o meu pai vinha da estação da Guarda às 6 horas da manhã e, ao passar na estrada junto do lameiro enorme que existe à saída de Pega, pareceu-lhe ver a carrinha 4 L (Renault) mais famosa da zona: a do Neca. Parou, foi lá ver. E era. Era a 4 L ainda a trabalhar e com as rodas da frente a rodar, a rodar.
E lá dentro duas figuras típicas da minha aldeia: o Neca e o Tó Coxito, companheiros inseparáveis de farra, durante anos e anos. Dormiam os dois. «Ressonavam», acrescentava a rir o meu pai, que sempre achou muita piada e delirava com as histórias do Neca.
Resta dizer que os dois meliantes vinham do Reivax, a «boîte» (hoje: discoteca) mais famosa da região, na Guarda, onde o Neca sempre passou noites e noites.

São às centenas as histórias deste género.
Só mais uma.
Era frequente o meu pai ir buscar o Neca ao Hotel Turismo da Guarda – acabava-se-lhe a massa e lá ficava retido até alguém ir buscá-lo e pagar.
Um dia, em Lisboa, para onde frequentemente se deslocava para jogar no Casino do Estoril, aconteceu-lhe a mesma cena mas no Casino.
Derreteu tudo o que tinha «tirado» da gaveta do estabelecimento do pai (e que nunca era pouco).
Mas a administração do Casino não o deixou sair.
Telefonou e um amigo (meu familiar) lá foi buscá-lo, pagar do seu magro ordenado a despesa remanescente, e libertou-o…


O Neca fica gravado no imaginário da malta da minha idade. Morreu cedo, de tanto abuso de álcool e de noitadas e café. E o demais que costuma acompanhar este registo, claro…

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