quarta-feira, agosto 16, 2006

Estórias de outro mundo

A pedra das agulhas

Sempre me incomodou. Ter de confessar que me senti enganado por todos, incluindo os meus familiares, não é fácil, mesmo passados tantos anos.
Era uma tradição malandreca da aldeia: gozar a rapaziada pequena.
Tudo começava com gestos de boa vontade.
E aí a coisa ainda dói mais: era enganado (eu e os outros putos) precisamente por ser «bem mandado» ou seja, por gostar de ser simpático para com os adultos.
O que choca é que esses adultos eram ajudados e à socapa apoiados mesmo pelos meus tios e pelo meu pai.

Do que se tratava?

Havia na terra três sapateiros. Mas nesta paródia só me lembro de entrarem nesta jiga-joga dois deles: o ti’ António Martins e o ti’ Luís Pinto.

Tudo começava por um favor que um deles pedia a um dos putos.
Por exemplo:
– Ó Zé Carlos, vai-me lá levar este saco com a pedra das agulhas ao ti’ Luís Pinto –, dizia-me a meio da tarde o ti’ António Martins, por exemplo.
E eu, todo prestável, todo importante nos meus quatro ou cinco anos, aí vou rua abaixo direitinho ao outro sapateiro.
E aí começava o meu calvário.
Lá chegado, com a saca às costas, pesadita, para as minhas costitas ainda frágeis – mas era a isso que os adultos achavam piada: ao nosso esforço…
O ti’ Luís Pinto:
- Olha, aquele alma do diabo enganou-se. Vai lá levar isto. Diz-lhe que eu preciso é da outra.
E eu, ainda patareco, achava o máximo o ti’ António Martins ter-se enganado e eu levar essa reprimenda ao senhor…
Chegado lá acima, o outro, que já sabia do esquema, dava-me imediatamente outro saco com outro objecto, mais pesado ainda…
E lá ia eu rua abaixo.
Na melhor das hipóteses, a coisa ficava por aí. Mas lembro-me de se contar que havia putos que andavam nisto a tarde inteira: abaixo e acima…
Uma brincadeira que hoje vejo como algo sádica, mas que, à luz daqueles anos 50, acabaria por ter graça, sem maldade.

Nunca soube o que é que, de facto, ia na saca.
Chamavam-lhe eles: «a pedra das agulhas» – e eu sempre pensei que era uma pedra para afiar as agulhas e sovelas que usavam os sapateiros. Nunca pensei nistop com mkaior profundidade – até hoje…

Claro que era uma brincadeira.
Claro que eles se divertiam imenso (não havia cinema – só mais tarde, ou numa parede do Largo de São Francisco ou nos «Italianos» – e só duas ou três vezes por ano; não havia teatro – só uma ou duas vezes por ano; não havia ainda televisão – só mais tarde, a meados dos anos 60. Era outro mundo).
Mas eu sentia-me humilhadito, depois de tudo passar.
Mas também só se cai até descobrir que tudo não passa de um truque e de uma maldade dos adultos.

Eu fui sempre ingénuo. Só o descobri depois de ter caído umas quantas vezes, repetidamente, na esparrela…

Por exemplo: caía sempre naquela de ir apanhar os «gambuzinos» do outro lado de um aqueduto por baixo da estrada: o adulto ficava cá em cima a bater na terra e a «espantá-los» e nós, feitos tansos, a apanhá-los do outro lado.
Claro que não há tal bicho, a não ser no imaginário da aldeia e na imaginação dos putos desse tempo…
Caí sempre nessa, também.
O que me envergonha até hoje, pela ingenuidade e «tansice» que isso significava.

Bons tempos.

1 comentário:

Anónimo disse...

ahhh!