Os bailes da minha aldeia
No início dos anos 50, éramos nós galfarritos de seis sete anos, a aldeia agitava-se aos domingos em torno dos magníficos bailes da terra. Eram famosos. Ficaram para sempre na nossa memória. Éramos pequenitos mas participávamos à nossa maneira como vai ver.
O som único: a concertina
Primeiro, a música.
A concertina, de boa memória.
A dos botões brilhantes e das lindas decorações rendilhadas, com inscrições em italiano.
Peças lindas.
Nem importava se tocavam bem ou mal: a concertina tem qualquer coisa de simultaneamente alegre e volteado no corridinho, saudoso na valsa, mas que também é trágico-sensual no tango, fala directamente à alma. Mas o mais frequente eram as melodias da rádio da época e as canções populares da região…
Sempre naquele som único que os meus ouvidos agora já tão raramente podem escutar.
Um som único, senhoras e senhores.
O Largo
Depois, o cenário: era no Largo de São Francisco que decorria tudo o que era fenómeno social. Os bailes também. O Largo enchia-se de gente. As jovens e os seus pares, a dançar. Os pais e mães e avós, a ver. Melhor: a vigiar se tudo se passava conforme a santa moral dominante. Os putos, a correr entre os pares de dançantes, a jogar ao «Apanha» ou simplesmente a correr uns atrás dos outros. No meio daquela confusão mui digna de registo, nunca nos confundíamos: cada um sabia o que tinha de fazer no meio da nossa paródia, que, não sendo socialmente tão importante nem tendo tanta visibilidade, era essa mesmo que nos dava todo o gozo: correr à séria no meio dos pares que dançavam…
O Largo ficava repleto, mesmo repleto de gente.
E era aí, naquele cenário irrepetível do tempo em que não havia nenhuma outra distracção, que decorriam os famosos bailes daquela aldeia, aos quais toda a gente, mas toda a gente, comparecia…
O baile mandado
O Zé Carrilho, ‘ganda’ malandro que, só com os olhos, «despia» as jovens da idade dele – dizem –, era quem mandava nos bailes.
Mandar, era dar as vozes. Gritava e, claro, cada par executava exactamente os passos como ele comandava. Era uma harmonia quase de geração espontânea e sem grandes arrebiques… E assim é que era belo. E o Zé Carrilho continuava a gritar as «vozes». E a miudagem continuava a passar a correr pelo meio das pernas dos dançantes… Que furor de imagens no cérebro da gente, hoje!
Vou dar exemplos.
Depois de todos estarem já a dançar durante, digamos, meia hora, começava então a cena das «vozes» do Zé Carrilho.
Eis algumas dessas «vozes de comando»:
«Dêem as mãos e alarguem!» - aí, os dançantes davam as mãos uns aos outros e faziam a grande roda, que ocupava todo o enorme Largo de São Francisco (eu era pequeno e aquilo, na altura, era muuuuuiiiito grande! Hoje, olho para o espaço e admiro-me de como as coisas são tããããããooo relativas…). A parte central do Largo ficava então vazia. Era uma cena linda…
«Eu passei!» - depois de a roda ter andado uns minutos, passava-se de par em par, o que fazia no largo um entrançado «coleante» muito bonito e em permanente movimento.
«Em chegando aos seus, fiquem-se!» - os dançantes paravam outra vez no seu par, claro.
«Os cavalheiros dão os braços às ‘madamas’!» - era para dobrarem os braços e dançarem de braço dado com o seu par, sempre ao redor da roda que «abraçava» todo o largo.
«Eu tornei a passar!» - aí, voltavam a circular em entrançado.
«Vai de roda e troca o par!» - cada um passava a dançar com o par seguinte do sexo oposto.
«Todos ao lugar e procuram o seu par!» - voltava tudo ao princípio.
«E o baile vai começar!» - o baile voltava ao «normal»: ele com ela, a entrecruzar pernas no tango que o homem da concertina já estava a arrancar dos botões madre-pérola do nosso encantamento…
Os «Italianos»
O local e a construção a que chamávamos «os Italianos» foram um mito durante toda a minha infância e adolescência. Era uma construção dos anos 40, anos da II Guerra, e fora erguida para servir de central de separação de minérios. Mas pouco uso tivera como tal porque os Menegoni seus proprietários (italianos) tiveram de fugir após a Itália ter sido ocupada pelas forças de libertação. O seu grande recinto exterior era ponto de encontro aos domingos. Os seus salões (antigos armazéns) serviram sempre de salão de baile. O espaço era óptimo para isso: um enorme «terreiro» lá dentro era o indicado para os bailes. Enorme, era o que nos parecia na altura.
Mais tarde, como o edifício era da família, mais adulto, ao entrar, tinha outra dimensão das coisas e nem me parecia tão grande. Mas, aos seis anos, o que é que não é grande?
Durante os anos 50, os bailes ou eram no Largo de São Francisco ou eram nos «Italianos», no exacto local onde hoje os herdeiros de um tio meu têm a sua residência quando vão lá e uma tia minha tem a sua casa mesmo de habitação e o café («Monte Estrela», parece-me que é o nome mesmo).
Sem comentários:
Enviar um comentário