A camioneta da carreira
Havia naqueles dias dos anos 50 alguns ícones que merecem referência aqui. São profissões, tipos, caracteres, pessoas especiais que, pela sua função ou indispensabilidade, ficaram no nosso imaginário para sempre.
A camioneta da carreira (autocarro diário) era um deles. Um dos principais.
Era um instituto. Duas vezes: às nove e às seis. Havia quem, àquela hora, não fizesse mais nada: ia para o Terreiro (Largo) de São Francisco esperar pela camioneta da carreira. Só para cheirar o que lá ia, quem lá ia.
Só por falta de ocupação e necessidade de manter o contacto com o «resto do mundo», digo eu hoje: o mundo terminava onde terminava o circuito da carreira: Belmonte para um lado, Ozendo / Sabugal para o outro.
Mas acontecia com os mais pequenos outro fenómeno que envolve também a camioneta da carreira: apanhávamos boleia, pendurando-nos lá atrás e indo uns minutos pendurados, com os pés mais ou menos a arrastar pelo chão. Aliás, não era com a carreira que apanhávamos boleia. Fazíamos isso também com a camioneta do peixe e um ou outro caso de camionistas que por ali paravam.
A técnica era muito simples: do Largo de São Francisco, onde toda a gente parava e, por maioria de razão a camioneta da carreira, até à curva lá em baixo, os motoristas aceleravam pouco porque tinham de fazer aquela curva fechada. Era então boa ocasião para «apanhar a boleia»: cada um pendurava-se cá atrás, onde podia, mas com uma regra sagrada: tinha de ir escondido do motorista. Se não, eles paravam e vinham cá a trás escorraçar o pessoal – que, ala, que se faz tarde, desaparecia em menos de um fósforo…
Mas nem sempre os motoristas abrandavam – às vezes, tenho a certeza, por malandrice também. Aí, toca a saltar. Por vezes, já em situação de perigo. E então lá ia um joelhito abaixo, uma esfarrapadela numa perna, um esmurranço num pé… Era uma vertigem pura, nessas alturas.
Impossível deixar de referir aqui quem era o motorista de sempre da camioneta da carreira: durante anos e anos. Nem sequer se admitia que pusesse haver outro. E se algum dia ia outro, já nada parecia igual. Era o ti’ Saraiva. Já era velhote (ou eu pensava que era. Naquelas idades, temos uma estranha noção de velhice. E, naqueles tempos, as pessoas tinham ou parecia-nos que tinham um estranho ar de velhice precoce). Mas sempre simpático para com toda a gente: era para todos o ti’ Saraiva.
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