domingo, agosto 27, 2006

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Linguagens da aldeia

O valor das palavras

Há palavras e expressões que nos anos 50 têm um significado profundo e subliminar que hoje nem se imagina. Na maior parte dos casos, o regime e a Igreja fizeram bem o seu papel: sedimentaram em cima da ignorância do Povo o significado que quiseram para cada palavra.
Um exemplo.
A Maçonaria combatia o regime? Então, tudo o que é mação é mau. Passaram esta ideia de base para as pessoas, repetiram isso até à exaustão e… nem preciso de explicar mais nada. De cada vez que se queria dizer que Fulano ou Sicrano era mau, tinha mau íntimo etc., bastava dizer:

«Aquilo é que é um maçónico!»

Estava tudo dito. Maçónico é mação, é pessoa sem princípios. «Made in» Regime + Igreja… Pessoa que fosse rotulada de «maçónica» estava marcada. «Voz do Povo, voz de Deus» – a coisa circulava nos bastidores da vida social da aldeia. A partir daí, «mais vale cair em graça do que ser engraçado»: tanto dava a pessoa ter princípios e quais eles fossem como não: era simplesmente «maçónico» e estava frito…

E agora um exemplo do contrário: palavras que qualificam pela positiva sem amis discussão também...
A palavra «Doutor» corresponde ao máximo na escala social. Se é «Doutor» (alguns, acho que só estiveram em Coimbra, mas ficaram para sempre «Doutores». Duvido que o «Doutor de Santo Amaro» alguma vez tenha concluído algum curso; e duvido que o «Doutor Guerra» (da «Quinta») tenha acabado uma qualquer licenciatura. Mas são «Doutores». E isso é que conta, nos anos 50: a reverência da Igreja e do Regime manifesta-se por aí também: o respeitinho da população garantida em símbolos de linguagem…

«Até é Doutor»

Ser «Doutor» é o máximo. Há poucos. A palavra é um título honorífico, como, sei lá, ser «conde» ou «besconde» (visconde, que também ali havia um numa quinta próxima...
Estamos nos anos 50, não esquecer.
Se é «doutor» é boa gente e gente importante, de certeza: gente do regime e amante da Igreja, nossa Mãe... Reparem que hoje a coisa mais vulgar é haver vários licenciados na mesma casa. Naquele tempo havia um ou dois em cada aldeia. Se tanto. Daí, a «valorização» do termo na época.

Chega o calão emigrante

A propósito de linguagem, vale a pena referir dois ou três vocábulos introduzidos pela mistura emigrante. Os primeiros regressados (meados dos anos 60) falam sem cessar das folhas de «peia», dos batimãs, dos bidonviles, da SNCF, dos papiês… Aos filhos falam uma mistura incrível. Ficou célebre aquela mão a gritar três ou quatro vezes: «Michel, tu vas tomber» («Miguel, vais cair»). E como o filho não obedecia e caíu mesmo: «Ah, malandro, eu bem dizia que partias os c****s!».
Explicando os termos trazidos de Paris e arredores (Seine-et-Oise; Champigny…) para a aldeia: folha de peia («feuille de paie») é o impresso relativo ao salário; batimãs (bâtiments) são as obras de construção civil onde muitos trabalhavam e davam cabo do cabedal; bidonviles («bidonvilles») são os bairros clandestinos miseráveis dos arredores de Paris, onde a maioria morava; SNCF: Société National des Chemins de Fer (Sociedade Nacional dos Caminhos de Ferro) onde alguns trabalharam anos e anos; os «papiês» («papiers») são, naturalmente, os almejados documentos de legalização como emigrantes.
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