O dia em que os do Vale de Lobo
compraram o comboio
Nos anos 30 e princípio dos anos 40 do século XX, na zona da minha aldeia, correu muita ilusão e muito dinheiro: era o tempo do minério.
De que minérios se tratava?
Segundo apuro nas muitas conversas sobre o assunto, tratava-se de recolher essencialmente volfrâmio.
Em doses menores haveria outros minérios, mas este era o mais frequente.
Formavam-se então verdadeiras empresas familiares para explorar filões.
Muito trabalho, mas também, muito dinheiro.
Lamentavelmente, na aldeia nunca ninguém se dedicou à segunda fase do processo produtivo do minério: a sua recolha em maiores quantidades para ser vendido aos donos das separadoras, os quais por sua vez os transaccionariam depois para o mercado da especialidade: no país e no estrangeiro.
Na aldeia chegou a haver uma separadora, mas da propriedade de italianos, os irmãos Menegoni – os quais, lá pelos idos de 1943 (suponho que depois da derrota da Itália na II Guerra Mundial, e em consequência dessa derrota, abandonaram tudo e terão fugido. Para a América Latina – para a Argentina, suponho).
Essa «fábrica», que ainda conheci na minha meninice, estava entregue ao meu avô paterno – o qual, aconselhado por um advogado, continuou durante anos e anos a pagar as contribuições e a ocupar o local. Passados os 30 anos que a lei prevê, portanto lá por 1973/74, esse meu avô adquiriu a propriedade pelo instituo jurídico da usucapião, com o qual tomei portanto contacto prático desde criança, já que o meu avô me confidenciava. Ainda eu não percebia sequer de que mecanismos estava ele a falar – e já ele me mostrava em segredo de sala/ escritório fechado à chave quais os passos a dar para que a propriedade entrasse na sua propriedade, relatando-me com todo o pormenor as conversas e as explicações do advogado. E explicava-me a diferença entre o uso, a posse e a usucapião… ou seja, todos os mecanismos que mais tarde iria encontrar nas aulas de Direito Civil, onde dava o «show» de contar estas histórias da minha infância…
Foi assim que «Os Italianos», assim se chamava o local da fábrica abandonada pelos Menegoni, entraram na propriedade da família.
Voltando ao minério: as aldeias próximas talvez tenham brilhado mais e enriquecido mais, porque se dedicaram também à compra e venda e não só à recolha e lavagem.
Terão sido anos de febre.
De tal modo que o dinheiro fervia nalguns bolsos.
A tal ponto que se conta que, um dia, alguns desses comerciantes do Vale de Lobo (nas proximidades da minha aldeia), já com os bolsos a abarrotar, resolveram ir para Lisboa durante umas semanas para derreter umas massas valentes.
E foram.
A pândega não teve medida.
Mas, mesmo assim, não conseguiram estoirar com a massa toda.
Foram e voltaram de comboio.
Já no regresso, depois de terem explicado ao revisor quem eram e o que tinham ido fazer a Lisboa, ter-se-á dado este diálogo entre eles e o revisor:
Revisor:
- Então e agora quando é que voltam a Lisboa?
Os do Vale de Lobo:
- Oh, isso não é fácil. Ainda se o comboio passasse lá na nossa terra…
- Mas isso pode-se resolver. Mas é uma coisa cara.
- Dinheiro não será problema.
- Então podemos fazer assim: os senhores compram-me o comboio e depois eu mando levar a linha para lá, para a vossa terra.
- Então e quanto é que vossemecê quer pelo comboio?
- E quanto é que os senhores têm?
- Já fizemos a conta. São ainda uns sessenta mil reis.
- Então com isso já se faz negócio.
Ao chegarem à estação de Belmonte, onde tinham que descer do comboio, nova arremetida do revisor, mais conversa… os da Vale passam-lhe o dinheiro para a mão e «pagam» o comboio…
O dinheiro na mão, o revisor aperta a mão a cada um e chuta para o ar:
- O comboio já é vosso.
E eles:
- Então e agora a linha? Quando é que vossemecê a muda?
- Para a semana já se começa a tratar do assunto.
- Então adeusinho. Até para a semana...
Ainda hoje estão à espera da linha, claro.
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