quarta-feira, março 23, 2005

Adenda ao Jornal das 17 / 22 de Março

Tinha pedido e acabo de receber da parte do dr. Lino Paulo a sua intervenção feita no Forum sobre Arrendamento Urbano promovido há pouco mais de uma semana pela Associação de Inquilinos Lisbonenses.
Edito-a tal e qual...
Aí vai:

O Problema da Habitação
A Reabilitação Urbana e o Arrendamento


Lino Paulo

1. O Problema da Habitação

A questão do arrendamento urbano continua na ordem do dia. Derrotada a iniciativa legislativa do Governo PSD-CDS/PP por força dos resultados eleitorais do passado dia 20 de Fevereiro, confrontamo-nos agora com o facto do Governo PS apontar como uma das suas prioridades a revisão da Lei do Arrendamento Urbano.
É verdade que, pese embora o superavit do número de fogos relativamente ao número de familias
[1], existe um problema de habitação em Portugal. Vejamos é se esse problema resulta do mal que sempre lhe associam: “o congelamento das rendas”. Ou se este é apenas o bode expiatório que é necessário imolar para que outros interesses prevaleçam.
O problema da habitação não pode ser entendido fora de um quadro de políticas continuadas de sucessivos governos, de favorecimento e apoio aos interesses imobiliários, com consequências graves e transvessais, aos níveis do ambiente, do ordenamento do território, do urbanismo e da habitação.
O problema da habitação e a sua resolução, não podem pois ser entendidos fora das políticas de uso do solo, de cidades, e de finanças públicas.
Hoje e neste entendimento transversal, a situação pode caracterizar-se do seguinte modo:
os centros históricos das cidades estão degradados e despovoados;
as periferias cresceram desordenadamente e, na generalidade, com baixíssima qualidade urbanística, carentes de infra-estruturas, equipamentos e verde. E a roçar o incomportável nos problemas de mobilidade.
as acções de renovação do tecido urbano consolidado têm obedecido, na sua maioria, aos interesses do imobiliário, seja pela assumpção do dogma de reabilitar a “custo zero”, e consequente aumento dos índices de ocupação, como na “Expo” em Lisboa, ou pela opção de substituir grandes imóveis, ou quarteirões inteiros, por condomínios de luxo.

E quanto à habitação:

o parque habitacional cresceu de forma significativa. Qualquer coisa como 89% em trinta anos, passando dos 2.560.000
[2] fogos de 1970 para 4.830.000 fogos em 2001;
continuam a subsistir fortes carências habitacionais, contando-se ainda cerca de 30.000 familias (dados de 2001) a habitar em barracas ou similares. E o problema das barracas não é o único – e por vezes não é sequer o mais grave – na exigência de realojamento;
o parque habitacional continua profundamente degradado. Ainda de acordo com os Censos de 2001, existem mais de 800.000 fogos a necessitarem de obras, encontrando-se mesmo 325.000 fogos em situação de ruína ou próxima;
e, na mira da especulação, o número de fogos devolutos não para de aumentar. São 544.000 devolutos a acrescer aos mais de 900.000 fogos destinados a uso sazonal. Só na cidade de Lisboa, dados de um estudo de 2004
[3], o número de alojamentos vagos aumentou 60 por cento na década de 90, totalizando cerca de 40.000 fogos em 2001. E o mais grave é que, destes, 72%, ou seja cerca de 28.500 fogos, se encontram fora do mercado de arrendamento ou de venda.

2. As Políticas do Imobiliário

A situação descrita é de facto grave e configura um efectivo problema de habitação. Para este problema, pretendem alguns, ter encontrado uma solução milagrosa. Dizem: - tudo está assim porque as rendas estão congeladas, Descongelem-se as rendas e tudo se resolve.
Só que o pressuposto – congelamento das rendas – é falacioso. É verdade que, em Portugal e a exemplo aliás do que sucedeu na generalidade dos países da Europa, as rendas estiveram congeladas, nas cidades de Lisboa e Porto, a partir de 1948, e no resto do país a partir de 1974. Só que este congelamento terminou em 1981, com a aplicação de critérios de actualização que, embora não tenham permitido recuperar dos níveis de inflação foram duros para a generalidade dos inquilinos. E a partir de 1990 para os arrendamentos habitacionais e 1995 para os comerciais, o regime ganhou feição claramente liberal, limitando-se o carácter vinculativo apenas à obrigação de durabilidade minima dos contratos em cinco anos.
E assim sendo, nada impede nem tem impedido, desde então, os proprietários dos mais de 500.000 fogos devolutos de os colocar no mercado de arrendamento a preços de mercado e com a liberdade de, passados cinco anos, se libertar do inquilino.
E se a degradação dos núcleos históricos e dos centros das cidades é imputável ao congelamento das rendas, então como explicar que:
tão poucas obras hajam sido realizadas após o descongelamento das rendas?
o número de fogos carentes de obras seja quase o dobro do número de contratos de arrendamento anteriores a 1990 (800.000 fogos degradados e 428.000 contratos)?
a situação em Lisboa e Porto, onde o congelamento de rendas durou trinta e três anos, seja similar à que existe no resto do país, onde o congelamento de rendas existiu apenas durante sete anos?
na cidade de Lisboa, de acordo com o estudo anteriormente referido, quase 10% dos edifícios em mau estado sejam posteriores a 1981 e, naturalmente na sua grande maioria, de habitação própria?
Em nosso entender, o problema da habitação não resulta do congelamento das rendas, aliás inexistente, e antes resulta da assumpção, por sucessivos governos, de políticas de habitação que se caracterizam por:
estrangular o investimento público na construção de habitação pública e nos apoios à recuperação de habitação;
e, ao mesmo tempo, apoiar, quase em exclusivo, a aquisição de habitação própria.
Só entre 1992 e 2002, o Estado investiu:
811.000 milhões de euros na construção de habitação pública. E foram construídos 40.104 fogos;
201.702 milhões de euros no apoio à recuperação de fogos. E foram recuperados 23.050 fogos;
5.947.750 milhões de euros no apoio à aquisição de casa própria (nas bonificações e nas deduções fiscais). E foi apoiada a aquisição de 1.504.789 fogos.
Não é pois de estranhar que, em 2001, 75,4% dos fogos (e a esta percentagem correspondem mais de 2.700.000 fogos) sejam ocupados pelos seus proprietários e que o número de fogos destinados a habitação própria, haja aumentado quase 72%, entre 1981 e 2001.
Este foi o “modelo” protegido. E serviu a quem?
Muito embora seja indubitável que grande número de famílias tenha conseguido, através da aquisição, resolver o seu problema habitacional e muito embora seja também verdade que a aquisição de habitação possa ser considerada uma boa forma de poupança, este “modelo” serviu essencialmente ao capital financeiro. E isto porque:
obteve chorudos lucros especulativos no processo de urbanização de imensas manchas de território periférico às nossas cidades e vilas;
obteve a fidelização, quase diria a contratualização para a vida, de todas as poupanças – e aqui forçadas – da quase totalidade das famílias portuguesas.
Os cidadãos, esses, no essencial:
viram-se expulsos dos centros das cidades, para periferias cada vez mais distantes, pior infraestruturadas e equipadas;
viram-se obrigados a longas e dispendiosas viagens entre o local de residência e o local de trabalho;
viram-se forçados a pagar uma “renda” ao banco que, à mínima dificuldade, lhes fica com a casa e com todo o esforço de poupança até então realizado;
viram-se forçados, mesmo quando tudo acaba bem e ao fim de anos ficam proprietários, a pagar em juros às vezes mais do que o valor da casa;
mas, apesar de tudo, sentiram vantagens na aquisição de um fogo, face a um mercado de arrendamento fortemente especulativo.

3. Os “Recados”
Se todas as políticas sectoriais de habitação têm privilegiado a aquisição de casa própria, como entender que venham, agora, os fautores dessas políticas lamentar a quase nula dinâmica do mercado de arrendamento?
Será que acreditam que alguém, excluindo alguns sectores jovens e aqueles que pretendem estadas de curta duração, vai alugar uma casa cujo direito lhe é manifestamente instável e pela qual vai pagar tanto ou mais do que pagará pela aquisição de um fogo, cuja amortização representa poupança?
Será que a experiência de Espanha não deverá fazer pensar? No país vizinho a liberalização total das rendas levou a que a percentagem de fogos arrendados decaísse de 18% para 10%, entre 1994 e 2003. E, no mesmo período, o mercado de aquisição tivesse crescido 125%.
Ou será que ninguém pensa seriamente no crescimento do mercado do arrendamento? O retorno à problemática do arrendamento estará assim relacionado com novas necessidades do capital financeiro, ligado ao imobiliário.
É que sendo verdade que o “modelo”, até agora seguido, se tem mostrado extremamente rentável em Portugal, não é menos verdade que o mesmo começa a apresentar sinais de esgotamento.
Senão veja-se:
Portugal é dos países da União Europeia onde o investimento em fundos imobiliários produz maiores retornos. Em 2003, esse retorno foi de 9,5%, só inferior aos verificados no Reino Unido e na Irlanda;
não obstante, a percentagem de retorno em investimento imobiliário tem vindo a decrescer nos últimos três anos;
e, avoluma-se o número de fogos nas periferias, que não encontram comprador;
e, mercê dos crescentes desemprego e instabilidade de emprego, avoluma-se o crédito mal parado no mercado da habitação. O crédito mal parado cresceu 12,4% no primeiro semestre de 2004, face a igual período de 2003, tendo totalizado 1.112 milhões de euros. E, mais grave, a tendência vem de trás, pois já em 2003, face a 2002, este havia crescido 16, 3%
[4].
Face a estes sinais de esgotamento, o capital financeiro, com pesadas responsabilidades na desestruturação do território das principais áreas metropolitanas e cidades do país, descobriu nova oportunidade de negócios: a reabilitação dos núcleos antigos. E, em constantes recados ao Governo, aponta a urgência de rentabilizar fundos especializados em áreas como a recuperação e a requalificação imobiliárias
[5].

4. Reabilitação na Óptica do Imobiliário – as S.R.U.
Como é óbvio, não se contesta a necessidade urgente de recuperar e requalificar os núcleos antigos. Aliás, e em coerência, não se contestará, antes se salientará, a necessidade urgente de ordenar e requalificar as periferias, ou ainda de travar a expansão constante de novas áreas urbanizáveis.
Contesta-se sim é que a reabilitação urbana seja entregue a empresas – as Sociedades de Reabilitação Urbana, S.R.U. – de início de capital público, mas logo abertas à predominância do capital financeiro. Predominância tanto menos aceitável quanto é certo que as S.R.U. gozam de regime excepcional que lhes permite elaborar Planos Estratégicos e Planos de Pormenor, bem como de avançar com expropriações.
A reabilitação dos núcleos antigos através das S.R.U. vai permitir ao imobiliário desenvolver, em larga escala, o “modelo” de intervenção com que já vem operando, ainda que limitadamente nesses núcleos, disponibilizando habitação a grupos sociais de alto e médio-altos rendimentos, essencialmente em condomínio fechado.
As competências e o regime excepcional das S.R.U. vão permitir o “reordenamento” de quarteirões ou, até, bairros inteiros, as demolições e as reconstruções pastiche. Mas vão sobretudo permitir a expulsão, por expropriação, dos senhorios pobres.
Para que os desejos do imobiliário sejam completamente atendidos, só falta, de facto, uma nova lei do arrendamento urbano que permita expulsar, igualmente, os inquilinos pobres.
É que aqueles que têm meios para adquirir, ou alugar, os fogos resultantes da reabilitação urbana, feita pelas S.R.U., não estão disponíveis para viver em “condomínios de luxo” com povo ao lado.

5. Outras Soluções são Possíveis
Pelo exposto parece-me claro que não é necessário alterar a actual legislação do arrendamento para proceder à reabilitação dos núcleos antigos. Pelo contrário, tal alteração, ligada à legislação das S.R.U., só levará a que a reabilitação seja feita contra os actuais moradores das cidades.
A reabilitação das cidades, do rico património físico e humano que nos foi legado, é demasiado importante para que o Estado aliene as suas responsabilidades. A Lei permite, aos municípios, o mesmo regime excepcional das S.R.U., pelo que estes podem e devem avançar de forma expedita:
com a elaboração dos Planos Estratégicos e dos Planos de Pormenor que se mostrem necessários;
com a exigência de obras e com os mecanismos de substituição aos proprietários, usando das capacidades expropriatórias – em sede municipal – se necessário;
com o estabelecimento de parcerias com entidades locais, para as diversas fases do processo incluindo obras e comercialização, privilegiando o movimento cooperativo e mobilizando associações de proprietários;
procurando que todos os concursos para a realização de obras tenham uma dimensão que não afaste as pequenas e médias empresas de construção civil.
Quanto aos proprietários, é bom lembrar que, pelo menos nas grandes cidades, a maioria dos imóveis degradados é propriedade da Banca, das Seguradoras ou de empresas gestoras de fundos imobiliários. E a estes não faltam certamente meios. E aos senhorios que manifestamente não tenham meios, há que garantir o apoio, por forma expedita, do Estado.
Quanto aos municípios, há ainda que exigir que abandonem o laxismo com que vêm ignorando a exigência legal de obras de conservação periódica, de oito em oito anos, no tecido edificado. E, como é óbvio, o Estado deve dar o exemplo na recuperação do seu parque habitacional.
Claro que uma política fiscal que penalize significativamente os fogos e prédios devolutos é igualmente importante.
Pelo exposto parece-me igualmente claro que, mude ou não a Lei de arrendamento e mais ainda se esta for alterada no sentido liberal, não haverá qualquer crescimento significativo do mercado de arrendamento, ao nível do parque habitacional privado. A grande maioria dos que não possuem a capacidade de poupança necessária à aquisição de um fogo, dificilmente conseguirá pagar o aluguer de uma habitação, com um mínimo de condições, no mercado privado.
É pois necessário que, a nível de Estado, sejam alteradas as políticas até agora seguidas, aumentando-se o investimento destinado à criação de fogos de renda apoiada, sejam eles propriedade pública ou de parceiros sociais para isso vocacionados. Portugal não pode continuar a ser dos países, da Europa, com menor percentagem de arrendamento social.
O problema da habitação é real e encontra-se bem diagnosticado, em especial em estudos da Secretaria de Estado da Habitação.
Como qualquer diagnóstico “em si” permite conclusões “para si” diferentes, consoante a óptica de classe com que é abordado.
No caso, ou a favor do capital financeiro ligado ao imobiliário, ou a favor dos interesses de vastas camadas da população que vão desde os mais desfavorecidos até à classe média.
É por aqui que passa a opção.

Notas
[1] Segundo os Censos de 2001 (INE), o número de alojamentos em Portugal é de 5.054.992 e o de famílias é de 3.650.357.
[2] Sempre que não exista referência em contrário os números apresentados são os dos Censos 2001 (INE)
[3] Estudo de 2004 elaborado pela Câmara Municipal de Lisboa sob a responsabilidade do Professor João Seixas
[4] Dados retirados de diversas informações relativas à actividade bancária, no primeiro semestre de 2004. Existe tratamento sistematizado em artigo de Paula Cordeiro, no “Diário de Notícias – Negócios” de 23 de Agosto de 2004.
[5] A imprensa dedicada ao imobiliário deu-se conta, em inúmeros artigos, destes recados. Por exemplo no “Expresso – Espaços&Casas”, de 5 de Junho de 2004, relata-se a realização de um painel constituído por representantes das principais imobiliárias (Sonae Imobiliária, José de Mello Imobiliária e Norfin) onde, para além dos “recados” referidos no texto, avulta ainda a “urgência de uma nova regulamentação para as rendas comerciais”.